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"AS HISTÓRIAS DA MINHA GENTE EM MIM DORMEM UM LEVE SONO"
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CONCEIÇÃO EVARISTO 

Travessia em Água pro morro:
A história nos pertence

Este texto caracteriza-se pela soma de necessidades e anseios relevantes na busca pelo direito de memória e identidade presentes em símbolos urbanos. A réplica em bronze da escultura "Água pro morro" (1944) de Erbo Stenzel, localizada na Praça José Borges de Macedo, em Curitiba, abriga muito bem guardada em seu cerne a identificação da mulher que a inspirou.
 
A obra premiada em diversos concursos e dotada de grande simbolismo é popularmente conhecida apenas por um apelido recebido na ocasião de sua inauguração, junto à fonte construída pela prefeitura municipal e entregue à cidade em 1996.
 
Considerando que esculturas projetadas ou transferidas para espaços públicos tendem a assumir o caráter de unidade de representação, seja ele por ideal, ou por quaisquer modelos de valores dentro de uma sociedade diversa, entendo por vital abolir significados tendenciosos, para não dizer racistas, que permeiam tão importante monumento representado pela figura de uma mulher negra, que nasceu, viveu e atuou, assim como seu autor, em terra brasileira.
 
E que, portanto, é justo que sua identidade e história também sejam conhecidas de todo o povo, favorecendo o digno reconhecimento de sua memória.

ELIANA BRASIL

O presente texto, a princípio despretensioso de soluções formais, é fruto do desejo de um trabalho autoral em poéticas visuais. As reflexões para tal, e seus consequentes desvelamentos, partiram do pressuposto de que é possível caminhar pela cidade e e facilmente localizar tensões na trama de suas arquiteturas. Com um olhar mais apurado e um ouvido um pouco mais atento também é possível alcançar vozes silenciadas por trás da história oficial que nos é contada. Representar tais vozes apagadas foi uma das ações que apreendi como artista-caminhante e observadora do espaço urbano em Curitiba. 

Meu primeiro contato com a escultura “Água pro morro” se deu já há algum tempo e eu não saberia precisar aqui quando aconteceu. Lembro-me que foi logo nos primeiros anos que cheguei em Curitiba vinda de Minas Gerais, e ainda morava no centro da cidade, entre 1997 e 1999. Fiquei tocada pela figura da mulher negra esguia, que altiva e resistente sustenta no alto da cabeça o pesado fardo — na ocasião, eu não sabia o nome da obra, se era réplica ou não e nem quem era seu autor, mas em minha negritude sabia muito bem o contexto, por íntima leitura social: a mulher carregando a lata d'água vai subir o morro para matar a sede e a fome dos seus.
 

Do seu corpo se destacam as curvas sob um vestido de tecido leve e solto colado à pele, e eu, atraída pelo ato de esculpir vindo dos vários anos de experiência em artesania, muitas vezes me peguei conjecturando sobre as sensações vividas pelas mãos que lhe imprimiram movimento em cada contorno. A beleza e a força tão bem capturadas naquela mulher se revelou sobretudo pela expressão do seu rosto, jovem, de linhas suaves, porém duras. Rosto combativo, alinhado com a posição do corpo, de olhar firme para o alto, completamente dissociado daquela sensualidade que lhe fora destacada. Vejo uma mulher em movimento, resistente, inserida numa realidade que não lhe permite alternativas a não ser enfrentar a labuta diária, afinal levar água morro acima não é tarefa de um único dia. Meu pensamento imediato foi sobre sua identidade — quem é ela? Lembro-me de Carolina Maria de Jesus, mulher preta saída da favela e igualmente altiva e combatente, lembrei-me de minha tia Efigênia, minha vó Etelvina, dona Jovita e outras mulheres e crianças da minha infância, com histórias semelhantes que também subiam um morro e desciam outro para buscar água no “cano”, uma bica d'água que ficava bem depois da Rua do Alto, na periferia de Belo Horizonte. Me recordo bem de dona Jovita, mulher negra de cintura estreita e quadris bem largos, que falava alto, dava gargalhadas e conseguia equilibrar a lata no alto da cabeça sem usar as mãos, os quadris balançavam muito enquanto caminhava, e eu criança imaginava que era aquele balanço que ajudava a equilibrar o peso da lata. Dona Jovita mantinha sempre um sorriso largo no rosto sem demonstrar o cansaço, somente seus olhos a contradiziam. Eram vermelhos, bem vermelhos, lembro que alguns diziam que “era de cachaça”. Carolina Maria de Jesus nos diz que "a tontura da fome é pior do que a do álcool”, e antes ainda da sua obra mais conhecida, “Quarto de despejo: o diário de uma favelada”, ela escreveu em “Diário de Bitita” (1982) que “o negro só é livre quando morre”. Minha mãe, minha avó, minha tia, e dona Jovita já se foram e acredito que estão sim, agora todas livres. 

Mas e ela, a mulher na escultura, quem é, ou quem foi? Qual a sua história? Por que está em praça pública? Qual a sua origem, em que ano nasceu? Qual a sua identidade e sua trajetória? E seus pais, filhos, amores? No dia em que a conheci e em outros também, circulei a fonte onde ela se encontra instalada e nada, nenhuma inscrição sobre a obra, sobre a autoria ou sobre “ela”, a mulher. No local, além do barulho da água, só o silêncio. Fui me informar e descobri que a mulher na escultura é antiga conhecida da cidade, ou pelo menos no centro da cidade, e não por sua verdadeira identidade, mas pelo apelido1 derivado vulgarmente do gênero feminino e do código visual que a personifica: a lata que carrega na cabeça. Eu considero grave isso. Pela minha experiência da infância e minha visão de mundo, devo assimilar que todas as mulheres negras que mencionei há pouco podem ser reduzidas a epítetos semelhantes? Fiquei novamente me indagando, e agora me vem à mente a celebre frase de Lélia Gonzalez: “negro tem que ter nome e sobrenome, senão os brancos arranjam um apelido... ao gosto deles”. Considero curioso e grave também a escolha da localização da obra. Nos fundos do Paço da Liberdade, onde hoje funciona um aconchegante café, e ali a poucos metros está a pequena fonte, onde a escultura foi erguida. Me pergunto por que ela estaria nos fundos e de costas para o prédio, espremida entre a estrutura concreta que já foi abrigo do Museu Paranaense e da prefeitura – antigo Paço Municipal. Como foi feita essa escolha? A prefeitura e o Museu já não funcionam mais ali, mas vejo como as suas estruturas permanecem, e não somente as físicas revelam as camadas do tempo.

 

Onde é possível enxergar beleza também é possível ver grandes fissuras. No café você pode sentar e saborear um delicioso expresso enquanto conversa ou observa a movimentação na praça José Borges de Macedo e no Mercado das Flores que fica logo ali, entre o Paço e a escultura. Mas se por acaso quiser caminhar até a fonte e dar a volta para finalmente ver a estátua de frente, talvez vá embora sabendo somente o seu apelido repetido com propriedade por frequentadores do local. Isso é passível de acontecer com qualquer transeunte ou turista. Aconteceu comigo, quando era moradora recém-chegada e caminhava por aí observando e absorvendo a cidade. Anos mais tarde, já na universidade, fiz alguns estudos em cerâmica relacionando a figura daquela mulher, ainda desconhecida, à solidão e resistência. Como disse anteriormente, na fonte ou na escultura não tem nenhuma identificação. Não existe placa, ouvi que até foi instalada uma com texto de homenagem ao escultor, mas que foi roubada algum tempo depois da inauguração e não foi reposta até os dias atuais. Hoje comparo esse espaço com outros da cidade e me pego refletindo sobre o sorridente busto de Lala Schneider erguido imponente de frente para o Teatro Guaíra, na Praça Santos Andrade com direito a uma placa informativa em local de destaque. Tais observações me dão conta de como existem inúmeros e perceptíveis “sinais que evocam feridas sociais” no planejamento estético e ideológico da cidade. Encontrei esse conceito de “cicatrizes urbanas” na pesquisa da professora e artista da performance e intervenções urbanas, Eloisa Brantes, RJ. E o mesmo considero que se aplica muito bem aqui. 

A descoberta do nome original da escultura e da biografia de seu autor se deu anos mais tarde no espaço acadêmico. O artista é o paranaense Erbo Stenzel (1911-1980), descendente de família austríaca e alemã, faz parte do grupo de renomados escultores do estado, entre eles João Turin e Zaco Paraná, que foram também seus grandes mestres. Stenzel era uma promessa pelo seu exímio talento e uma vez que no Paraná ainda não havia escola oficial de Artes, foi indicado para cursar Escultura na Escola Nacional de Belas Artes, antiga Escola Imperial no Rio de Janeiro. Se mudou em 1939 iniciando o curso nesse mesmo ano, e durante sua permanência na ENBA, que foi até 1943, teve os custos de sua estadia subsidiados por meio de autorização de Manoel Ribas, então interventor federal do Paraná. Stenzel viveu no Rio de Janeiro por 11 anos e no decorrer desse período se consagrou como grande escultor e gravurista, produzindo inúmeros e importantes trabalhos, entre eles a escultura da qual trato aqui, cujo título original é “Água pro morro'', realizada em 1944 segundo consta nos documentos da época. No entanto, ao buscar saber mais sobre a obra e a mulher representada fiquei descontente com a quantidade de informações desencontradas, rumores sobre um possível relacionamento com o seu autor e fantasias associadas à mulher que o inspirou, além do apelido ruim adquirido aqui na cidade. Em face disto foi absolutamente compreensível quando algumas mulheres negras do grupo “Casas das Pretas” de Curitiba, me revelaram que não se viam representadas de maneira alguma naquela imagem pública e a rejeitavam por conta das associações pejorativas. Olha o conceito de ferida social se revelando. 


É realmente assustador o quanto o sentido de pertencimento de um povo pode ser ardilosamente destruído ainda hoje, século XXI, por meio de sutilezas maquiavélicas, e aqui, etimologicamente falando, considero o autor de “O Príncipe” mesmo! Nomes posteriores ao de Maquiavel, e tantos outros “homens de bem” que o sucederam na construção do ocidente, inspiraram o martinicano Aimé Césaire a apresentar uma boa lista destes, passando por Conde de Gobineau2 até chegarmos em Adolf Hitler — “Discurso sobre o colonialismo” (1950, p. 18). Representantes da chamada arte afrodiaspórica, e entre estes Rosana Paulino, nossa artista visual, negra, pesquisadora e curadora brasileira, tem abordado de maneira contundente em seus trabalhos a forma como o racismo, e sobretudo o racismo científico interferiu potencialmente, por exemplo, para justificar os processos colonizatórios e a escravização de pessoas negras. Isto sem considerarmos a dizimação de povos originários e todas as demais consequências terríveis que colhemos até os dias atuais. Expressões presentes como manutenção do poder, racismo estrutural e sexismo só dão conta do quanto a história ainda nos obriga a estar em constante posição de combate. Lélias Gonzalez e Aimés, que nos guiem. Quanto ao Paraná e sua capital Curitiba, são conhecidos por enaltecer os “laços europeus” gerando com isso o que podemos chamar de “história única” — Chimamanda Adichie (O perigo da história única, 2018) sobre as narrativas construídas. Em “Invisibilidade, preconceito e violência racial em Curitiba” (1999), os autores analisam o processo de construção do modelo de “capital europeia” que teve base na almejada semelhança de valores e culturas com aquele lado do Atlântico. De acordo com a pesquisa, é possível identificar o apagamento categórico da presença negra em favor das demais etnias a partir do projeto arquitetônico da cidade de Curitiba e de seus historiadores — como Romário Martins — além de sucessivas e alinhadas trocas de gestão que cooperavam em prol da construção da narrativa. A socióloga Maria Célia Paoli, na obra “O direito à memória: patrimônio histórico e cidadania” (1992, p. 27), aponta que “a construção de um horizonte historiográfico se apoia na possibilidade de recriar a memória dos que perderam não só o poder, mas também a visibilidade de suas ações, resistências e projetos” e que é portanto necessário adotar “políticas de preservação e produção de patrimônio coletivo que se apoiem no reconhecimento do direito ao passado”, ainda que se encare um grande desafio, o qual, segundo Paoli, seria “fazer com que experiências silenciadas ou suprimidas da população se reencontrem com a dimensão histórica”. Nesse sentido, percebo que pequenas mudanças vêm surgindo ancoradas principalmente nas constantes mobilizações de representantes da população negra. Mas ainda há muito que ser feito para que se rompa definitivamente com a hegemonia cultural paranaense. 

Voltando à escultura, sobre seu título “Água pro morro”, penso que ele por si só nos diz muito sobre o pertencimento racial e social no Brasil, e não creio que precise contextualizar o período ou o espaço em que o trabalho foi produzido para entender a obra de Stenzel. Acredito sim que é necessário, a partir daí e no contexto atual, discutir representatividade, gênero, raça, classe, sexismo, lugar, e para isto conclamo outras áreas do conhecimento para que se amplie tal debate. Quanto à mulher que inspirou a obra, lamento que nada nos seja revelado sobre a sua identidade, sequer um nome ou um bom adjetivo. Setores da arte poderiam dizer que se há de respeitar e compreender a escolha do artista. Essa ausência de humanidade e de subjetividade, tão comum em outras obras premiadas ao longo de toda a história da arte brasileira quando se trata de representação do povo negro, nós vemos, por exemplo, em “Limpando Metais” (1923) de Armando Vianna (1897-1991), “Mestiço” (1934) de Cândido Portinari (1903-1962), e “A negra” (1923) de Tarsila do Amaral (1886-1973). Trabalhos como esses carregam a característica de suprimir a individualidade de seus personagens em favor da atratividade ou do ofício. Indo para além de Debret e Rugendas, esses são alguns dos exemplos emblemáticos para manter aceso o nosso discurso sobre representação, protagonismo e o papel da arte. Em outras palavras, como aponta Rosana Paulino, são obras realizadas pelo “olhar do outro”  e sem cansar de citar Paulino (2016), a arte é responsável sim por criar e “perpetuar lugares simbólicos sociais”. A mulher negra nunca admitiu ser a cativa sem nome confinada ao trabalho doméstico, destinada tão somente a dar brilho em metais cujos reflexos se sobrepõe à sua existência como na obra de Vianna, ou ainda, que tenha a sua identidade aprisionada a uma figura disforme — como sinônimo de um novo tempo, na pintura de Tarsila. E ainda que o “Mestiço” da década de 1930 afirme um país constituído por várias raças e que encontra aí a sua própria brasilidade, alinho meu pensamento as(os) que enxergam nessa visão positiva do trabalhador pardo dedicado à terra, uma figura muito próxima à do negro escravizado. Precisamos também imputar que a mestiçagem teve origem nos estupros da casa grande e mesmo que o hino da república no final do século XIX já engendrasse a (falsa) ideia de democracia racial, anos mais tarde a miscigenação seria proposta por membros da elite brasileira como "elaboração de uma política de extermínio da população negra no Brasil". 

ARTE VISUAL

Com todas essas questões e tantas referências em mente e pensando em uma possível recostura sobre as nossas histórias, desejei respostas plausíveis e urgentes sobre a mulher que inspirou Erbo Stenzel. Para que verbos como “desemaranhar”, “emendar”, “alinhavar”, “tecer” ou “cerzir” que aprendi com as minhas mais velhas pudessem de alguma forma contribuir com a reversão dos estigmas encontrados junto à escultura Água pro morro e sua personagem, que pra mim simbolizava resistência e solidão. Iniciei então uma travessia em meados de janeiro de 2020, e hoje já somam mais de 500 dias de pequenos avanços e tessituras.

Sobre o trabalho desenvolvido por Erbo, sabe-se então que foi no ano de 1944, quando estava já formado, mas ainda no período em que frequentava a antiga Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, e que a escultura em gesso foi premiada pelo Salão Nacional de Belas Artes (este dado eu não havia conseguido confirmar aqui no paraná e aguardava confirmação pelo setor de patrimônio e história da EBA/RJ, atual Escola de Belas Artes vinculada à UFRJ). Todas as informações a que tive acesso na instituição foram remotamente nos arquivos da EBA. São dados de datas salteadas e em sua maioria dizem respeito a assuntos institucionais e gestões internas.

De acordo com a arquivista Jacilene Alves Brejo, os arquivos digitalizados correspondem somente até 1939 (ano em que Erbo ingressou na Escola, confirmado pela sua ficha de matrícula). Demais anos estão incompletos, e uma pesquisa mais profunda nos documentos que ainda não foram tratados seria possível somente pessoalmente, o que descartei no momento, devido sobretudo ao grave período de pandemia que estamos atravessando. 

Fonte: Acervo da artista

De acordo com a cópia de um dos documentos que o professor de pintura da UFPR, Geraldo Leão, gentilmente me confiou, a escultura em gesso foi cedida pelo extinto Museu de Arte do Paraná (MAP) à Prefeitura Municipal de Curitiba com autorização do sobrinho do escultor, João Nestor Stenzel, para que fosse providenciada sua fundição. O documento original é um ofício do MAP de 05 de junho de 1995. Nele consta o ato de solenidade naquela mesma data para inauguração da obra “Torso do trabalhador” (1941) já em bronze, e a informação de que duas reproduções de “Água pro morro” seriam oportunamente colocadas em logradouros públicos da cidade. 

Uma das réplicas se encontra desde 2008 no pátio interno do Museu Oscar Niemeyer, e esta de que tratamos foi inaugurada em 15 de maio de 1996 na Praça José Borges de Macedo, Centro. Esse monumento, composto pela réplica da escultura e fonte, recebeu a inscrição onde se lia “MARIA LATA D’ÁGUA – FONTE EDIFICADA PELA CIDADE DE CURITIBA EM MAIO DE 1996 PARA CELEBRAR A MEMÓRIA DO ESCULTOR LOCAL ERBO STENZEL (1911-1980) RAFAEL GRECA DE MACEDO - PREFEITO”. Conforme a placa que foi afixada na base da escultura, estas eram as únicas informações, além do nome do então prefeito. O apelido foi de fato o título formal concedido pela prefeitura ao monumento, anulando do conhecimento público um dado importante que seria o nome original da obra. A mera menção de homenagem ao escultor encerrava o tributo. 

Posteriormente, a partir do documento “Programa de preservação da arte escultórica paranaense – primeira metade do século XX” (1995), que me foi direcionado por Christine Vianna Baptista, foi possível desnovelar importante parte do processo de recuperação desta e de outras esculturas, como as de João Turim e de Zaco Paraná que se encontram na cidade. A descrição sobre “Água pro morro”, está bem detalhada e chama atenção a maneira como ela foi armazenada após a morte do escultor. A escultura permaneceu na varanda da casa de Erbo Stenzel enquanto este ainda era vivo, e após sua morte foi transferida para um depósito e finalmente deixada no porão da casa, sofrendo, além da ação do tempo, também os danos causados pela água da chuva e por constantes movimentações inadequadas. No documento consta que a obra foi encontrada em péssimas condições:
[...] a obra foi bastante danificada, estando a cabeça  separada do corpo, a mão direita seccionada no pulso; faltavam parte da perna e o pé direito, parte da coxa esquerda e parte traseira da base. a perna esquerda totalmente fragmentada, deixava à mostra entre o joelho e o tornozelo a estrutura em ferro entortada e oxidada […]”

 

O contraponto curioso é a escultura também em gesso “Torso do trabalhador”, que se encontrava em poder da família em excelente estado de conservação, não necessitando de nenhum reparo para sua fundição . 

“Água pro morro” naquelas condições foi doada ao extinto Museu de Arte do Paraná (MAP) por Nestor Stenzel, irmão de Erbo, em 1989, nove anos após sua morte. O “Torso do trabalhador” também foi enviado ao acervo, mas somente para sua guarda, uma vez que continuaria pertencendo à família. Em posse do museu, uma primeira reestruturação técnica de “Água pro morro” foi feita artesanalmente em 1993 por Carlos Alberto Teixeira Cruz. Posteriormente, no ano de 1995, foi realizado o trabalho de restauração com a recomposição anatômica feita por Elvo Benito Damo, passando finalmente pelo processo de fundição em bronze em São Paulo, juntamente com outras obras do projeto, como o “Torso do trabalhador”. Esta última fase da reprodução foi realizada em parceria com empresas públicas e privadas do Paraná após cessão das obras originais à Prefeitura de Curitiba. Entre as responsáveis pelo levantamento, estão as fundadoras do Núcleo de Pesquisa e Projeto Arte Paraná - MAP, Myriam Sbravati e Christine Vianna Baptista, esta última tendo coordenado todo o projeto de pesquisa publicado em 1995. A partir desses registros, observo como um reconhecido trabalho apresentado em vários salões e de acordo com esses mesmos documentos, contemplado com diversas medalhas, de ouro e de prata, corria o risco de deixar de existir pelo grave estado em que fora encontrado. 

Logo nas primeiras páginas desse compilado tão importante, o texto de introdução chama a atenção pelo título “O homem tem a dimensão do seu conhecimento e a cidade só permanece se não perde a alma”. Esse texto introdutório subscrito com o nome do então prefeito Rafael Greca de Macedo, encerra com a seguinte explanação:

[...] recuperadas para o grande público as obras impõem-se não 

apenas como testemunho de escultores renomados do paraná, mas também se transformam em pontos de referência cultural para aqueles que têm poucas oportunidades de ir em museus ou galerias inseridas no cotidiano da cidade elas promovem o diálogo entre arte e público sinalizando para uma visão mais ampla e fornecendo aos indivíduos instrumentos adicionais para a realização de sua plena cidadania [...]
 

Aqui retorno ao texto de Maria Célia Paoli, publicado em “O direito à memória - patrimônio histórico e cidadania” (1992, p. 25), no qual a socióloga sinaliza que certas funções sociais em monumentos arquitetônicos ou obras de arte são passíveis de suspeita, sobretudo naquelas que se amontoam em museus ou “se achatam no meio da paisagem urbana”, destituídas de seu papel ideal, cujo sentido de memória abarcado pela noção de patrimônio histórico deveria ser a preservação do passado como forma de abranger as multiplicidades culturais e coletivas de um povo. Paoli, ao abordar memória e experiências sociais, aponta para o quanto o exercício de cidadania está ausente nas ações pretensamente voltadas ao culto estético do passado, sem levar em consideração as ligações e constantes transformações da cidade. Nesse sentido e entendendo que a “realização de plena cidadania” pode ser também sinônimo da participação diversa na construção cultural e coletiva do espaço, considero justo e urgente o reconhecimento público desta obra conforme a escolha do seu autor com o seu devido título, para que sua carga imagética, sua história e finalmente a sua presença na cidade nos seja herdada, abrangendo além do sentido de patrimônio, o de territorialidade. 

Neste ponto é importante ressaltar a história da ex-passista brasileira que ficou conhecida pelo título de Maria Lata D’água por desfilar com o adereço na cabeça. Maria Mercedes Chaves é o nome dela, nascida no Rio de Janeiro, desfilou por seguidos anos em escolas de samba como Portela e Beija-flor, e tem sua trajetória amplamente explorada. Mas a sambista não tem nenhuma relação ou influência na obra de Stenzel, ao menos cronologicamente não, pois “Água pro morro” foi produzida na década de 1940 e Maria Mercedes com sua personagem ficou conhecida mais de uma década depois. Porém, as histórias se cruzam sim por outras vias e sobre identidade e apagamentos, são diversos os atravessamentos. Maria Mercedes mesmo  tenha elegido por decisão própria o seu pseudônimo, diz que existem muitas pessoas que nunca souberam o seu verdadeiro nome. 

Embora o apelido empregado à escultura seja popularmente conhecido aqui em Curitiba, o nome “Anita Cardoso Neves” é facilmente localizado em quase todos os assuntos relacionados ao tema. Anita é mencionada pelo menos em três importantes artigos que li. Em “Esculturas públicas em Curitiba e a estética autoritária” (2004), Geraldo Leão Veiga de Camargo escreve sobre as prováveis influências pessoais de Erbo para escolha da modelo na obra, o que provavelmente contrariava seu posicionamento político na ocasião:
 

[...] É necessário também cautela na ligação automática entre as 

simpatias políticas de um artista e sua obra, pois esta [...] recebe 

também o impacto das experiências pessoais, irredutíveis às 

cartilhas ideológicas. Exemplo disso é a sua escultura Água pro morro, hoje instalada na Praça José Borges de Macedo, [...]. O 

modelo da escultura foi Anita Cardoso Neves, que posava na 

Escola Nacional de Belas Artes, a quem Erbo conheceu quando 

estudava no Rio de Janeiro [...]. 


Neste capítulo o autor narra a relação próxima e de intimidade entre o escultor e Anita. Geraldo foi meu professor de Pintura na UFPR, e já havia me passado muitas pistas interessantes que precisavam ser investigadas, uma delas era que Anita havia se tornado estudante daquela instituição e também uma grande artista. Mas até aqui em lugar algum havia confirmado tal informação. Em “O Dono da rua – Erbo Stenzel”, documentário gravado pela TV Sinal, o instrutor de arte Pedro da Silva Neto (que também se mostra bastante descontente com o epíteto dado à obra) afirma que a modelo da escultura se chamava Anita e que foi uma escultora, mas não acrescenta nenhum outro dado relevante sobre sua identidade e função, e quando questionado pela entrevistadora sobre o possível romance entre os dois, Silva Neto encerra o assunto dizendo que são apenas fofocas. No setor de pesquisas da EBA até essa altura nada havia sido localizado pela busca do nome Anita Cardoso Neves. 

No artigo “De: Erbo Stenzel. Para: Lydia e Nestor Stenzel”, Didonet Thomaz contextualiza um pouco da trajetória e da personalidade disciplinada, metódica e reservada do artista a partir da leitura de uma das cartas encontradas nos pertences da família, na casa de Nestor Stenzel, irmão de Erbo. Em seu texto, Thomaz também revela o nome de Anita Cardoso Neves:
 

Erbo Stenzel manteve correspondência (fechada em alemão no 

Acervo Stenzel) com sua irmã Sara, [...], suspeito da importância 

desse conjunto de páginas; outra pista ainda está no estudo já aberto 

das cartas de Anita Cardoso Neves para ele. Mas dele mesmo 

quase nada, ficando a esperança criativa da não definição. A 

qualquer momento pode surgir uma informação capaz de 

surpreender e mudar o rumo do pensamento.
 

Aqui a pesquisadora anuncia a existência de uma comunicação consistente entre Anita e Erbo, no trecho onde diz “estudo já aberto das cartas de Anita Cardoso Neves para ele”. Didonet Thomaz evidencia a importância deste material, dada a característica introspectiva e reservada de Erbo Stenzel, e aposta no surgimento de algum dado que revele novas camadas de sua personalidade em uma possível posteridade. Muitas questões surgem frente a este silêncio, o fato é que o próprio tempo muda todas as coisas, faz mudar o rumo do pensamento, altera as perguntas e exige novas respostas. Didonet é artista, escritora e membro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP/SP) e foi peça-chave para este "patchwork". Atua junto aos Stenzel como mediadora entre a família e o estado desde 1986 e durante muitos anos organizou documentos do artista. Entre as diversas mensagens e e-mails que trocamos sobre o assunto de meu interesse, deixou explícito que não foi pesquisadora de Erbo Stenzel, porém sempre solícita compartilhou informações cruciais sobre a localização de muitos documentos que hoje estão em poder dos setores de pesquisas da Fundação Cultural de Curitiba (FCC) e de museus como o Museu Oscar Niemeyer (MON), muitos deles organizados e catalogados por ela própria. 

Entretanto, foi nas mensagens trocadas com Thomaz, e não nos documentos, que recebi a valiosa informação para que o meu trabalho se encaminhe para a finalidade que busco neste momento. Nas nossas últimas conversas indaguei à pesquisadora sobre os tais estudos já iniciados das cartas de Anita Neves e se este era de fato seu legítimo nome. Pedi que, caso possível, me revelasse o que já sabia a respeito. A resposta veio em seguida com mais atalhos para novos dados de pesquisa e alguns anexos, um dos quais dá conta de que Erbo mantinha uma pasta rotulada como “Anita Cardoso Neves” com diversos outros trabalhos direcionados à Anita, entre eles gravuras feitas em metal, monotipias e uma pintura. Outro e finalmente revelador anexo é uma digitalização do jornal carioca Correio da Manhã, de 20 de fevereiro de 1953, com a lista de convocados daquele ano para a mesma Escola Nacional de Belas Artes, onde constava o verdadeiro nome de Anita: Emerenciana Cardoso Neves. Localizei na seção “Candidatos chamados à secretaria”. Logo abaixo do curso de pintura estão os nomes convocados para o curso de escultura e ali está o nome dela! O primeiro da lista. Didonet Thomaz afirma que esse é o verdadeiro nome de “Anita”, e encerra o e-mail esclarecendo que isso é tudo o que pode informar, e me deseja boa sorte. Ao finalizar a leitura, me retorna à memória uma palavra que ecoa desde a nossa primeira conversa: tabu4. Foi o termo que Thomaz utilizou naquele primeiro dia para definir o tema “Anita” junto à família Stenzel. 

Enfim, de posse de tão cara informação, retornei aos documentos da EBA/RJ no arquivo intitulado “1934-1955 Matrículas – PDF”, naquele onde já havia identificado o nome e o desempenho acadêmico de Erbo Stenzel. Foi com imensa satisfação que ao alcançar a página 173, do ano de 1953, finalmente encontrei o nome de Emerenciana! A folha amarelada, desbotada pelo tempo, guarda o registro que testifica a existência e humanidade de Emerenciana Cardoso Neves. Seu nome, seu endereço, seu local e data de nascimento. Os nomes de seus pais, sua história! Enfim, parte das primeiras perguntas que fiz frente à sua escultura em nosso encontro inicial estavam ali descritas. Anita nasceu no dia 14 de março de 1918, e, se viva, completaria 103 anos em 2021. Também pude ver suas notas e seu ano de conclusão no curso de Escultura, na mesma Escola e no mesmo curso que fez seu destino se cruzar com o de Erbo. Tudo isso constando ali, naquela folha parda, envelhecida, escrita à mão com grafia cursiva, característica da época.

 

Poderia ficar exultante com os resultados até aqui, mas voltei a pensar no artigo do professor Geraldo Leão. Seria leviano de minha parte destacar dentro de um material tão importante sobre ideologias autoritárias a partir da análise de esculturas públicas somente o trecho onde é relatado o envolvimento emocional de Erbo. Mas o fato de que o escultor retornou ao Paraná após viver 11 anos no Rio de Janeiro e lá ter deixado uma mulher com quem não rompeu relações após a sua volta como está descrito no texto é muito significativo para pensarmos sobre as relações raciais e o autoritarismo. Geraldo Leão menciona em seu texto que talvez Erbo não tenha trazido Anita consigo para o Sul “porque ela era negra e pobre”. Estudos relatam que a mulher negra historicamente é preterida por homens brancos e inclusive por homens negros, comumente abandonada emocionalmente além de invisibilizada por diversos segmentos sociais. Razões que podem ser entendidas como reflexo da desumanização histórica ou do “não lugar” ocupado pelas mulheres negras na sociedade, conforme descrito por Grada Kilomba (2008, p. 97). É a imagem da mulher que por não ser vista como sujeito(a), há de suportar qualquer mazela. Aquela que, sem direito ao seu próprio corpo, ficava submetida a atender às imposições da casa grande, fossem trabalhos forçados ou os estupros por seus escravizadores. É dentro desse imaginário maldito, herdado de uma realidade chamada colonialismo, que as mulheres negras estão inscritas.

ARTE TEXTIL

Fonte: Arquivo histórico da Escola de Belas Artes, UFRJ. 

Emerenciana ou Anita Cardoso Neves, segundo consta nas publicações, foi uma mulher incrível, e marcou uma época na história da ENBA. Morava aos pés do morro, próximo à universidade, junto com uma extensa família na Rua da Pedreira, número 76. Era cantora, compositora de sambas-enredos e poeta, cuidava de uma cafeteria dentro da escola e já era escultora reconhecida, com exposições e medalhas antes mesmo de ingressar como estudante no curso superior. Emerenciana estudou desenho e gravura no Liceu de Ofícios e realizava suas esculturas no intervalo do trabalho. Se preparou para o vestibular da ENBA sendo aceita no ano de 1953, quando Stenzel já não residia mais no Rio de Janeiro, e se formou então escultora em 1959. Nesse mesmo período, jornais do Rio de Janeiro apresentavam Anita Cardoso Neves como uma grande artista dedicando a ela várias matérias, inclusive de páginas inteiras.

De acordo com as palavras registradas no texto coordenado por Christine Vianna Baptista, Neves marcou também a vida de Erbo Stenzel, que se “apaixonou” pela mulher simples e radiante, se inspirando em sua força e vitalidade para criar “Água pro morro”. O objetivo do artista seria disputar a sonhada medalha de ouro, prêmio máximo do Salão Nacional de Belas Artes.

Todas essas informações estão registradas em jornais cariocas e no documento construído por Vianna Baptista e Myriam Sbravati, que chegou em minhas mãos pelo Ricardo Freire5 quando eu já estava no fim desta pesquisa. O documento se encontra no acervo de Erbo Stenzel, em posse hoje do setor de pesquisas do Museu Oscar Niemeyer, arquivado junto a outros materiais de grande importância do “Arquivo de Aço'' de Erbo Stenzel. 

 Infelizmente, após tantas leituras realizadas até aqui não me impressiona que mesmo com todo o histórico, além da “profunda admiração'' que Erbo nutria por Anita, ela tenha sido invisibilizada perante a sociedade paranaense e se tornado “tabu” para a sua família. Penso na "solidão da mulher negra" e concluo que a desumanização de corpos negros numa sociedade estruturalmente racista faz com que a indiferença ou a deslegitimação de nossos feitos ou de quem somos sejam naturalizadas, ainda que se sacrifique qualquer nuance de bom sentimento.

 

Todas as mulheres da minha infância morreram solitárias. Carolina Maria de Jesus, a mulher que ficou mundialmente conhecida por escrever o dia a dia de uma favelada, preferiu criar sozinha seus três filhos, em razão dos constantes abandonos e violências praticadas por seus ex-companheiros. Yêdamaria, a talentosa pintora e gravurista da década de 1960 reconhecida internacionalmente como uma das maiores pintoras brasileiras de sua época, faleceu solitária e foi encontrada dias depois da sua morte na Bahia sozinha dentro de casa. A engenheira paranaense Enedina Marques, os jornais locais apontam que foi encontrada da mesma forma aqui em Curitiba. Todas essas mulheres, com suas distintas histórias de vida, de pequenas glórias ou de grandes infortúnios, compartilharam o fato de terem carregado em suas cacundas (ou igualmente em suas cabeças) o peso do racismo e das desigualdades.

PERFORMANCE

Anita Cardoso Neves - Matéria de Jornal

 Fonte: Jornal do Brasil  (1971) 

A rejeição e o desprezo por suas peles retintas e por suas proles de cores escuras são práticas que se perpetuam até os dias de hoje e denunciam uma sociedade racista, que nega, invisibiliza e mata mulheres que contribuíram e contribuem para a construção do País, da nossa cultura e da nossa história. Ao entrelaçar essas memórias e entre tantos cruzamentos, ainda não sei como absorver o fato, mas ao atentar para o dia, mês e ano do nascimento de Emerenciana Cardoso Neves , constatei  um alinhamento de datas — 14 de março de 1918 — marca a triste coincidência com o dia da morte da vereadora e ativista negra Marielle Franco — 14 de março de 2018.

 

Um centenário marca neste plano o início de uma grande passagem e o final de outra. E outro fenômeno acerca dessa data que a torna profundamente simbólica dentro desta costura dolorosa é o nascimento de Carolina Maria de Jesus, também no mesmo dia e mês. Carolina de Jesus, que foi contemporânea de Emerenciana, nasceu no dia 14 de março de 1914. Talvez a numerologia possa responder tal alinhamento, ou deixemos a cargo do tempo circular, que não começa e não termina, e nos conecta dentro de nossa ancestralidade, onde nos vejo, sustentadas por resistentes fios que costuram, tecem, e finalmente unem nossas histórias; de onde nossas memórias fragmentadas serão resgatadas para que se faça justiça à honra de todas as ancestrais, até que um dia seguiremos novamente livres, ainda em vida.

intervenção hurbana

Figura 2, 5, 6 e 7 - Registro de Performance "Patchwork - Tecendo uma identidade" - (Eliana Brasil) 2021

 

Carta à Emerenciana (Anita) 

Há tempos trago você em pensamento, são noites e dias vivendo a sua presença como se intensamente caminhasse ao meu lado, e foi com uma alegria doída que cheguei até este ponto sobre sua história. Mas nos resta saber muitas coisas a seu respeito, querida Anita. Era assim que gostava de ser chamada também entre os amigos? Como foi a sua vida? Filhos, os teve? Quais foram os teus sonhos e onde estão os seus trabalhos? Tivemos acesso a uma entrevista que você deu ao jornal Diário Carioca em 1959 cujo título "Samba-enredo escrito por mulher" nos chamou muito a atenção!

 

Nela você fala da sua participação como primeira mulher a contribuir com sambas-enredos de várias escolas, exercendo esse ofício já por mais de 10 anos e destaca especialmente a classificação obtida pela Escola de Samba Caprichosos de Pilares com o samba “Laços de fita” naquele ano. Procurei a música e ainda não encontrei. Mas me alegrou sentir o quanto você ficou radiante por ter desfilado junto à escola na ala das baianas. Ficamos imensamente felizes por saber que também escrevia poemas (espero que cheguem até nós), e que os declamava em várias rádios do Rio de Janeiro.

Você se formou escultora naquele mesmo ano e disse que já possuía diversas medalhas de prata e bronze conquistadas no Salão dos Artistas Brasileiros e Salão Rural.6 Então foi uma artista que se expressou e produziu avidamente! 

Sobre as suas cartas endereçadas a Erbo, fui informada pela pesquisadora Christine Vianna Baptista que estão sob a guarda do Museu Oscar Niemeyer, guardadas no “arquivo de aço” junto a outros documentos e trabalhos meticulosamente organizados pelo próprio Erbo Stenzel. Me foi informado que tudo foi levado do extinto MAP no ano de 2003 para o setor de pesquisas do MON, que se encontra agora fechado ao público por conta da Covid-19 (Ricardo me disse por mensagem que só vão reabrir depois que tiver vacinas para todos). O valioso “arquivo” de Erbo é uma mina de ouro para qualquer pesquisador(a) e se não estivéssemos enfrentando essa terrível doença mundial que vem assolando nossas vidas talvez eu teria avançado um pouco mais. Mas novas pistas chegam a todo instante e isso é muito bom, quem sabe alguém retome esse estudo para que possamos ter mais conhecimento sobre você, afinal, existem tantas informações ainda a serem desvendadas. 

Espero que em breve novos desdobramentos desta ou de outras pesquisas já iniciadas resgatem integralmente sua história e em sua totalidade lhe garantam dignidade e honra. Historicamente, inerentes a toda figura representada pelos monumentos públicos das cidades, não é mesmo? A sua história nos pertence e aqui em Curitiba, capital do Paraná, na firme escultura que sobreviveu a tantas formas de intempéries, estará imortalizada. Ficamos imensamente felizes de ouvir a sua voz, que de alguma maneira atravessou o tempo ecoando através de tantos ruídos aqui da cidade de Erbo Stenzel. A partir daqui creio já ter elementos mais que suficientes para dar materialidade à uma produção poética, têxtil — se chamará Patchwork. Sobre as nossas vivências, que possamos seguir entrelaçando um ponto ao outro, e ao outro, e ao outro... Daqueles tecidos onde nossas memórias negras estão inscritas, ao serem resgatados, que sejam cerzidos com fios duplos, e nos vãos onde não for mais possível ler ou ouvir nosso passado, que os preenchamos com pintura, poemas ou bordados e que o chamemos de resistências. E assim, de tecimento em tecimento, de mãos em mãos, costuraremos nossas próprias narrativas até que nossas existências e memórias deixem de ser negadas, mal escritas, ou descosturadas.

 

Esteja em paz. Com afeto, 

Eliana Brasil 

1 . O apelido foi suprimido do corpo deste texto para evitar o prejuízo de produzir resultado contrário àquilo que se espera, ou seja a sua afirmação pela repetição. No entanto em algum momento da escrita o mesmo será apresentado ao leitor com o caráter de informação, pois trata-se do título dado ao conjunto arquitetônico (fonte mais a escultura) inaugurado em 15 de maio de 1996 pelo então prefeito Rafael Greca de Macedo.

2 . “Arthur de Gobineau, na íntegra Joseph-Arthur, conde de Gobineau, (nascido em 14 de julho de 1816, Ville-d'Avray, França; morreu em 13 de outubro de 1882, Torino, Itália), diplomata francês, escritor, etnólogo e pensador social cuja teoria do determinismo racial teve uma enorme influência sobre o desenvolvimento subsequente de teorias e práticas racistas na Europa Ocidental”. Sua obra mais conhecida “Ensaio sobre as desigualdades das raças” (1853) alicerçou a ideia da supremacia ariana e consequentemente serviu de base para o nazismo. Disponível em: https://www.britannica.com/biography/Arthur-de-Gobineau

3 . Ideologia de branqueamento difundida por membros da medicina e intelectuais da elite brasileira que propagavam que o Brasil em algumas décadas teria eliminado por completo os traços negróides de toda a população, por meio da mistura das raças. A pintura "Redenção de Cam" (1895) de Modesto Brocos (1852-1936) foi amplamente utilizada para ilustrar esta tese, e como políticas públicas foram criadas leis de incentivo à imigração de europeus entre o final do século XIX e início do século XX. Disponível em: https://racismo-cientifico.weebly.com/branqueamento-no-brasil.html

4 . Que é proibido por crença ou pudor: proibido, censurado, interditado, desautorizado, interdito, banido, vedado, vetado, restrito... 

https://www.sinonimos.com.br › tabu

5 . Ricardo Freire é atualmente responsável pelo Centro de Documentação e Referência do Museu Oscar Niemeyer

6 Texto retirado da entrevista de "Anita Cardoso Neves" ao Jornal Diário Carioca em 20 de fevereiro de 1959.

Agradecimentos

À RMN-PR (Rede de Mulheres Negras do PR), minha base.

Ao grupo "Casa das Pretas", porque somos inúmeras.

À professora Megg Rayara de Oliveira, por ser minha eterna inspiração.

Ao professor Geraldo Leão por tanto me instigar na arte.

Ao professor Emanuel Monteiro por não me deixar distanciar da poesia.

À Didonet Thomaz pela importante contribuição nesta travessia.  

REFERÊNCIAS 

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo da história única. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019 

ARQUIVO HISTÓRICO DA ESCOLA DE BELAS ARTES, UFRJ. Registro estudantil de Emerenciana Cardoso Neves, Matrículas 1931-1955. (fotografia). 

BAPTISTA, Christine Vianna. Programa de preservação da arte escultórica paranaense: primeira metade do século XXI. Curitiba: Prefeitura Municipal; Fundação Cultural de Curitiba, 1995. 

BERTRAMI, Luisa. O Diário de Bitita, de Carolina de Jesus: Mulheres do Mundo #1 [BRASIL], Nota Terapia, [2021]. Disponível em: 

https://open.spotify.com/episode/0fQ0IiToUAZUELiACYwS3E?go=1&utm_source=em bed_v3&t=0&nd=1 

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CÉSAIRE, Aymé. Discurso sobre o colonialismo. 1. ed. São Paulo: Veneta, 2020. 

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20 

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YÊDAMARIA et al. Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Museu Afro Brasil. 2006

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